sexta-feira, 27 de janeiro de 2017

Movimento Negro no Brasil: novos e velhos desafios.

Ao longo dos últimos 25 anos, são muitas e ricas as ações de combate ao racismo que vimos desenvolvendo. Construímos excelência em alguns campos que tem resultado em avanços reais da questão racial. Como nos alerta Maria Aparecida da Silva, a educação é uma das áreas em que figura o maior número de experiências concretas e produção teórica no escopo de trabalhos implementados pelo Movimento Negro contemporâneo. Desde os primeiros anos da década de 80, dois aspectos vêm sendo abordados com ênfase, o livro didático e o currículo escolar.

Publicado originalmente no CADERNO CRH, Salvador, n. 36, p. 209-215, jan./jun. 2002
No que tange ao livro didático, denunciou-se a sedimentação de papéis sociais subalternos protagonizados por personagens negros e a reificação de estereótipos racistas. Apontou-se em que medida essas práticas afetam a formação de crianças e adolescentes negros e brancos, destruindo a auto-estima do primeiro grupo e, no segundo, cristalizando imagens negativas e inferiorizadas da pessoa negra, em ambos, empobrecendo o relacionamento humano e limitando as possibilidades exploratórias da diversidade racial, étnica e cultural.

No que se refere aos currículos escolares, chamou-se atenção para a ausência dos conteúdos ligados à cultura afro-brasileira e à História dos povos africanos no período anterior ao sistema escravista colonial. Houve várias iniciativas de inclusão destes temas nos currículos formais de certas escolas, ou mesmo redes de ensino de algumas cidades brasileiras. Entretanto, esbarrou-se no problema da falta de formação do professorado para tratar essas questões em sala de aula. Mais recentemente, duas novas linhas de ação têm sido evidenciadas pelo movimento negro, a capacitação de educadores e a produção de recursos didático-pedagógicos para discussão do racismo, da discriminação racial e compreensão das desigualdades geradas por eles.
Avanços significativos se processaram no combate ao racismo do ponto de vista legal, constituindo uma nova e vigorosa área de atuação e produção de conhecimento, a do “Direito e Relações Raciais”, com crescente engajamento de operadores do direito, instituições jurídicas e a proliferação dos SOS Racismo, tanto no Brasil como em alguns países da América Latina.
Avançou a organização política das comunidades remanescentes de quilombos, adquirindo dimensões nacionais. Cresceu a participação dos negros nos meios de comunicação e a consciência da exclusão da imagem negra nesses veículos.
O movimento de mulheres negras emergiu, introduzindo novos temas na agenda do movimento negro e enegrecendo as bandeiras de luta do movimento feminista.

É significativo o crescimento do número de militantes negros adquirindo títulos acadêmicos, resgatando a condição do negro como sujeito do conhecimento, especialmente o conhecimento de si próprio. Passamos de objeto de estudo a sujeitos do conhecimento, fazendo com que a Universidade comece a se constituir como um importante campo estratégico de atuação.
Apesar deste conjunto de ações, creio que ainda persiste entre nós um sentimento de insatisfação em relação à nossa trajetória política. Vivemos momentos de paradoxos e perplexidades. Momentos, a meu ver, de reciclagem da nossa velha democracia racial, que sinalizam a antecipação das elites desse país diante do avanço da questão racial. Quais são os sinais que nos permitem caracterizar esse momento?
Parece que a Rede Globo de Televisão resolveu fazer ação afirmativa por sua própria conta e então estabeleceu uma cota mínima de um e máxima de três negros por novela. Estou certa de que vimos lutando para ampliar a presença negra nos meios de comunicação, mas também tenho certeza de que nunca definimos essa cota estabelecida pela Globo!
Nas propagandas é perceptível o aumento da presença negra. Nós também lutamos por isso. No entanto, não é nossa a definição de que basta um negro perdido numa multidão de brancos para expressar uma perspectiva inclusiva. Ou seja, não é nossa a definição de uma imagem negra que exprime uma inclusão minoritária e subordinada, como espelha a maioria das propagandas em que os negros são mostrados.
Há diversos produtos editoriais segmentados para negros, cujo traço comum é o estabelecimento de um “novo” padrão estético que, supostamente, atende às necessidades de modernização da imagem do negro. Isto significa que lutamos por produtos específicos para a nossa população, mas não conseguimos determinar as características destes produtos. É o mercado que o faz.
Mas por que não conseguimos manter o controle sobre processos que nós mesmos desencadeamos?
Por que não temos instrumentos de monitoramento dos desdobramentos de nossa ação? Por que todos esses novos eventos não são apresentados, a nós e à sociedade abrangente, como produto de nossa ação política, construída ao longo de décadas de denúncia e reivindicações? Tudo acontece como se fosse fruto de geração espontânea ou de uma disposição repentina de valorização da diversidade que teria acometido a sociedade. O que permite que sejamos expropriados de nossa própria prática política.
Referindo-se ao seminário sobre multiculturalismo, organizado pelo Ministério da Justiça, o vice-presidente Marco Maciel, afirmou que o mesmo indicava “que o Estado brasileiro está finalmente engajado em um aspecto que diz respeito às suas responsabilidades históricas, em relação às quais sucessivas gerações da elite política brasileira sempre demonstraram um inconcebível alheamento.”1
A partir dessa fala, entendo que o Estado busca recuperar a iniciativa sobre o ordenamento das relações raciais, ao mesmo tempo em que expropria o movimento negro da condição de sujeito de um processo no qual, em verdade, o Estado foi obrigado a intervir sob pena de perder o controle; a ele, portanto, caberia estabelecer os limites em que o debate deve se processar. Exemplo concreto disso foi o papel secundário, ou de mero coadjuvante, reservado à militância negra do Brasil no contexto daquele seminário, caracterizando o mesmo processo de alijamento que ocorre em outras instâncias da sociedade.
Assim, reitero, as conquistas que negros e negras vêm obtendo na desmistificação da democracia racial, na maior visibilidade do racismo e na reversão de certas práticas discriminatórias, longe de legitimar nossa ação política enquanto movimento social, têm servido para subsidiar o que eu chamo, na ausência de melhor conceito, de neo-democracia racial. Esta atende a pelo menos dois interesses.
O primeiro, de ordem política, visa amortizar a crescente tomada de consciência e a capacidade reivindicatória dos afro-descendentes, especialmente o segmento mais jovem, assim impedindo que o conflito racial se explicite com toda a radicalidade necessária para promover a mudança social. O segundo interesse, de ordem econômica, é determinado pela lógica de mercado estabelecida pelo capitalismo globalizado, ávido por novos mercados, o qual antevê, na potencial consolidação de uma classe média negra, a viabilização de um novo mercado consumidor.
Para atender a estes dois interesses, a neo-democracia racial estabelece a capacidade de consumo como o limite da cidadania negra. Desse modo, no novo desenho de relações raciais que se delineia às portas do novo milênio, o status de consumidor é garantido a alguns afro-descendentes, enquanto, por outro lado, ampliam-se os mecanismos de exclusão social da maioria.
Então, onde fica o movimento negro? Temos reivindicado em vários campos por políticas públicas, por políticas de ação afirmativa. Contudo, reivindicamos políticas sem querer fazer política no seu sentido mais amplo, sem atentar para as condições em que se trava a luta política. Enfim, sem priorizar a construção da organização política que possa viabilizar as nossas reivindicações.
Apesar dos nossos esforços, a questão racial não está na agenda nacional! Ela não tem merecido apoio público de nenhuma força política relevante, só sendo referida quando se trata de momentos eleitorais. Como, então, um tema ausente da agenda nacional pode se transformar em objeto de políticas públicas?
A lenta absorção da dimensão racial pelas instituições tem se dado porque, como diz um ex-deputado de São Paulo, ao contrário de outros movimentos sociais, o movimento negro não conspira, não tem lobby, não negocia as suas diferenças em prol de um objetivo estratégico. Este objetivo estratégico não é outro, senão a mudança das condições materiais da população negra, pois o que move a ação política é o desejo de mudança. E isso exige ir ao encontro do nosso povo.
Somos um movimento de denúncia ou de transformação? Como vimos, temos até sido propositivos no que concerne à eliminação das desigualdades raciais.
Na Marcha de 95, construímos um documento de consenso que contém um Programa de Superação do Racismo e da Desigualdade Racial.2 No entanto, não assumimos coletivamente nenhuma responsabilidade de monitoramento da implementação ou não daquele Programa.
Mesmo assim, temos sido eficientes na denúncia da farsa da democracia racial. Construímos massa crítica sobre diferentes temas: educação, saúde, direito e relações raciais, a luta pela terra, gênero; com a nossa prática política e nossa experiência histórica de opressão, redefinimos as noções de democracia, cidadania e direitos humanos. Isto faz de nós agentes civilizatórios desta sociedade.
Contudo, ainda não construímos uma organização política reconhecida como interlocutora dos interesses da nossa coletividade, que articule os avanços nos diferentes campos, em torno de um projeto político que tenha como eixo fundamental a mudança das condições de vida de nossa gente, que otimize o capital político, o capital financeiro, o capital social, os recursos humanos e materiais dispersos nas diferentes formas de combate ao racismo.
Ainda não construímos uma organização política capaz de identificar os elementos mobilizadores de nossa comunidade, de forma a possibilitar a massificação do movimento, de demonstrar força política e organizativa, e capacidade de colocar em risco a governabilidade, que é o que usualmente obriga o poder a negociar. Não temos uma forma organizativa que nos permita disputar poder real nessa sociedade.
Talvez nunca, como agora, essa questão tenha sido colocada de maneira tão crucial, pois, a despeito de nossas debilidades organizativas, temos promovido o avanço da questão racial na sociedade.
Porém este avanço se dá sem direção, sem liderança, sem uma estratégia política que o informe. Por isso, o projeto político, que deveria ser nosso, começa a ser definido por forças externas, e até contrárias, ao movimento: o mercado, os governos, as empresas, os meios de comunicação. É a isso que eu venho chamando de neo-democracia racial.
Considero, portanto, que a nossa debilidade organizativa é que explica porque não mantemos o controle sobre os desdobramentos de nossa ação, porque todos esses novos eventos de valorização da diversidade são apresentados como se nada tivessem a ver com a nossa luta.
Resta analisar a que se devem as nossas dificuldades no plano organizativo. Em primeiro lugar, a militância do presente não presta tributo, não se referencia nas experiências históricas de organização política no continente africano e na diáspora.
Não esgotamos, por exemplo, as possibilidades políticas abertas pela experiência extraordinária do Quilombo dos Palmares, ou até mesmo da Frente Negra Brasileira – FNB. Como foi possível, naquele momento histórico, construir um tipo de organização como a FNB, que chegou a formar um partido negro?
Por que a Frente Negra, ao contrário de todos os partidos extintos pelo Estado Novo, não se rearticulou após 1946?
Nunca fizemos um exercício efetivo de avaliar a potencialidade política do Quilombismo de Abdias do Nascimento. Esquecemos as lutas de libertação dos países africanos, não nos inspiramos nas teses de Kwame N’Krumah, de Amílcar Cabral, de Agostinho Neto, de Patrick Lumumba. Perdemos a perspectiva expressa na tradição pan-africanista. Deixamos de nos fazer muitas perguntas: em termos organizativos, há algo a aprender com o Congresso Nacional Africano – CNA – da África do Sul? O pensamento de Steve Biko responde a alguma dimensão da luta racial travada no Brasil? O pensamento de Malcolm X pode aportar alguma contribuição à luta dos negros brasileiros? E o movimento de direitos civis, liderado por Martin Luther King? Deixou lições que interessam ao nosso processo? Se não é a nossa história de lutas, quem, ou o que informa hoje a nossa prática política?
Os brancos revisitam os seus clássicos, especialmente nos momentos de crise. As novas gerações de militantes negros sequer conhecem os nossos, pois não criamos meios de transmitir nosso patrimônio libertário. Onde foram parar os nossos encontros regionais, que durante anos foram elementos de socialização de experiências diversas e que afinavam a nossa análise de conjuntura?
Como um movimento transformador pode levar 8 anos para construir um II Encontro Nacional?
À beira de um novo milênio, assistimos, impotentes, à novela “Terra Nostra”, da Rede Globo de Televisão, na qual personagens brancos, diante de milhões de espectadores, afirmam que italianos não poderiam ir para senzala porque “são brancos, trazem no coração o espírito da liberdade…”
Consentimos que um jovem personagem negro reclame, na mesma novela, “Deus não quis me embranquecer”.
À beira de um novo milênio, permitimos que intelectuais brancos, racistas, sintam-se à vontade para desqualificar, ridicularizar e ofender a militância negra, sem esboçar uma resposta coletiva, uma reação organizada.

A construção de estratégias coletivas de luta é produto de organização política, de liderança reconhecida e legitimada. Nossa responsabilidade histórica é responder aos desafios que estão colocados, através de uma expressão política que represente os anseios do povo negro desse país. Este é um desafio político fundamental para a militância negra no presente.





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