segunda-feira, 14 de outubro de 2019

O medo da escuridão: A história de minha avó e de muitas outras. De Francy Junior.


Na vida minha missão é sempre aprender. Foi pensando assim que tomei o desafio de escrever esse texto e partilhar minhas observações. A busca pela raiz é a essência e a fonte principal de todas as religiões. Nasci em uma família de negros e negras fortes com condições econômicas muito precárias. Filha mais velha de um coletivo de oito vivos e quatro mortos. Restando nos dias atuais setes raízes entrelaçadas pelo mesmo sangue oriundo da Ilha do Cabo Verde, de onde veio meu bisavô Francisco. Morávamos em um terreiro de minha avó. Um quintal grande, cheio de árvores frutíferas (manga, abacate, jaca), misturava-se com planta vendica, com a qual adorava banhar-me da folha. Nesse espaço tínhamos na frente à casa de minha avó, que abrigava minha tia (sua única filha mulher-Tia Beta). Era uma casa de madeira grande, com piso de barro batido, duas quedas2 e coberta de palha3. Minha avó era do santo, mãe-de-santo da religião com matriz africana. No meio do terreiro, havia uma casa grande de dois pisos, toda de madeira, coberta com alumínio, pertencia ao meu tio mais velho, que morava sozinho, mas a casa vivia cheia de gente. Ele recebia pessoas doentes, homens e mulheres vindos de diversos lugares. Haiva um quarto cheio de santos e velas. No fundo, havia duas casas gêmeas, a parede de uma era da outra. Era a casa do meu pai e do seu irmão, ambos viviam com suas mulheres, que todos os anos pariam um filho ou filha. A casa do meu pai e de minha mãe era menor, um vão apenas dividido ao meio, de madeira, piso de tábuas de refugo, telhado de alumínio, fogão com duas bocas e panelas que brilhavam penduradas na parede. O chão da casa era tratado com escova de aço. Minha mãe era impecável na limpeza e na cozinha. Sempre fez comidas deliciosas. O cheiro das ervas, do alho e de pimenta entravam no meu corpo, no meu cérebro, deixando meu estômago nervoso. Porém nunca era nossa, pois era de muita gente que vinha para a festa dos santos do meu tio. Nós só comíamos quando sobrava ou quando davam para matar nossa fome. Ela matava pato, galinha, fazia vatapá, farofa e tudo. Ela era comandada por uma negra velha amiga da família, que conhecia pratos de diversos lugares e sabia tudo sobre comida gostosa. Elas cozinhavam com amor, devoção e muito zelo, procurando sempre colocar sua fé como tempero especial. Minha avó era uma mulher negra muito especial e participava do templo religioso da Mãe Maria Estrela, mãe de santo da minha avó Joana, que adorava ir. Eu chamava de batuque da Dona Margarida, queera uma mulher branca e forte, que vestia saias rodadas, lindas, usava sempre lenço amarrado na cintura. Havia muitas festas e a de que eu gostava mais era “Cosme e Damião”, pois era dia de ganhar doces de todas as formas e cores. Meu tio Manoel também comparecia. Meu pai, Mário, e o meu outro tio, José, tocavam o tambor feito de tronco de árvores com couro de animal. Antes de tocar tinha de fazer uma fogueira e esquentar o couro que vibrava com osom “tum, tumtum, que tum, que tumtum”. As pessoas dançavam alegremente referendando os santos. As vozes das mulheres acompanhavam o tambor e elas batiam palmas e giravam, giravam e giravam cantando “Santa Bárbara dê licença é vossos filhos que pedem – pela coroa de oxalá, pela coroa de Iemanjá”.Fui criada observando as oferendas para os caboclos e os orixás. Na casa da minha avó Joana e do meu tio sempre havia pessoas que so-friam de diversos males do corpo e da alma. Lá era um refúgio: portas abertas para o socorro, para a ajuda, para amão amiga. Este lugar não era proteção apenas para essas pessoas, era, também, para todos nós.Quando comecei a sair de casa, a transpor estes muros de proteção, quan-do comecei a ir para rua para brincar ou mesmo para a escola, eu e minhas irmãs sempre ouvíamos no caminho piadas como “Olha as negrinhas do café!”, “Lá vêm as macumbeiras!”. Não entendia o que significavam essas palavras. Quase sempre contávamos para minha mãe e minha avó. Meu tio dizia para responder aos meninos que ele ia fazer uma macumba para eles. Besteira!. Eu não entendia por que ajudar outras pessoas, fazer oferenda, tomar mocororo4eram coisas ruim, eram do diabo, era do mau. 
 Era inquietante. Eles não mexiam comigo quando me viam na catequese5. Creio que nem eles sabiam o que estavam fazendo. Era vergonhoso ser negra e ser do terreiro. Pensava assim. Muitas vezes minha avó me levava às procissões, às novenas e às missas. Lembro que certa vez ela me disse que não precisava ter medo nem vergonha dos caboclos, dos orixás e dos santos e que eles, eram proteção, não eram do mau, não era o diabo. Na casa do meu tio e de minha avó era como hospital: as pessoas chegavam, falavam de seus problemas e ali iam ficando até fortalecer a alma. As coisas que minha avó encantada6 ou atuada como chamamos, com seu “flecheiro” – o santo-da-cabeça da minha avó –, fazia e falava principalmente para as mulheres era como agir, o que usar e o que tomar. Era socorro para aquelas que chegavam com a cabeça baixa e saíam pisando firme.Ela benzia crianças, costurava rasgadura, tratava de paridas e fazia oferen-das. Fui crescendo observando também conflitos na cabeça de minha avó, e isso porque, de um lado, ela mantinha sua raiz religiosa, e, do outro, ouvia a religião superior dizer que aquilo que ela fazia era cultuar o mau. Aos poucos ela foi deixando sua raiz e sua história de matriarca para trás. Foi-se arrependendo dos pecados que a religião dos brancos lhe mostrava. As-sim, ela foi abandonando os orixás, negando sua essência, sua identidade, e foi moldando dentro dela uma visão de religião diferenciada e de cuja história o culto, as oferendas e os orixás não faziam parte A vontade de jogar todos os seus pertences era a forma de apagar toda uma vida e de iniciar uma outra voltada para o preceito cristão.Fui crescendo alimentando dentro de mim a idéia de que a religião da minha avó e de toda a minha família era sagrada, assim como a religião dos meninos que nos xingavam. Porém não entendia os motivos pelos quais as pes-soas se escondiam, não se mostravam e não se assumiam como pertencentes à religião dos pretos e das pretas.Hoje entendo que aqueles meninos da minha infância praticavam uma violência simbólica, que sutilmente nos impunha fotores culturais e morais influenciados pela visão cristã do mundo.Nessa caminhada observatória, percebi que, nas diferentes igrejas que montam o palco das religiões, as mulheres sempre são as servidoras, subalternas, sem espaço para partilhar opiniões ou fazer parte da cúpula decisória. O senso comum da “vontade de Deus” leva à naturalidade da violência contra a mulher, que dificulta a criação de espaços de resistência, de autoestima, de ajuda e de solidariedade e cristandade. Partilho um depoimento que ouvi há pouco tempo.  
Sou Nona7, negra 28 anos. Quando criança freqüentava a religião protestante e lá muitas vezes fiquei com medo da escuridão, pois aprendi que tudo relacionado à cultura negra era escuro, diabólico. Nas pregações sempre se falavam da bruxaria, feitiçaria, de trabalhos oferecidos para o satanás. Sempre liguei o gato preto, galinha preta, a escada, as miçangas, corujas, bode como coisas do mau, da macumbaria. Assim fui crescendo aprendendo a ter vergonha da cor que tenho. Fui criada a não falar, só ouvir e obedecer. Fui criada achando que devia uma costela ao meu pai, meus irmãos. Por outro lado conhecia meninas na escola que eram da macumba, filhas de pai e mãe de santos, que não tinham medo de nada, eram livres, aprenderam que somos o que somos. Entendo hoje o que isso representa para mulheres negras como eu. Não tenho mais medo, porem ainda não consegui congregar em um templo da religião com matriz africana..(...) 
Histórias assim são repetidas com freqüência e embutidas no inconsciente coletivo de muitas mulheres das diversas religiões. Umas buscam conhecimen-to, outras passam sua vida submetidaa uma relação violenta ou conflituosa com seus pais, companheiros, párocos, pastores, confessores e outros. Vivem a religio-sidade como uma imposição ou mesmo como uma ação que castra e domina.Quando minha avó deixou de fazer culto aos orixás, nunca me falou que tudo aquilo que fazia era do mau: que as festas, as danças e as comidas eram culto aos demônios. Penso que a religião é uma moeda com dois lados. Segundo Haidi Jars-chel, a religião ideologicamente sempre atua dando direção e sentido à vida. Às vezes libertadora, abrindo horizontes. Outras vezes, apresentando e cultuando estradas punitivas. O que observo é que, em quase todas as culturas e em quase todos os tempos, a religião tem legitimado ideologicamente a subserviência das mulheres. Enraizando ao senso comum formas metodológicas e associan-do o feminino ao mal. Deixando sempre as mulheres escravas das punições, colocando-as à margem, abandonadas, excluídas, violentadas e abortadas pela sociedade machista e patriarcal. Em pleno século vinte e um estamos vivendo um fenômeno do funda-mentalismo religioso que fortalece o lado patriarcal e moralista das religiões, o que tem como resultado um fortalecimento da mentalidade conservadora em relação aos papéis das mulheres e dos homens na sociedade. Faz-se urgente a desconstrução destes eixos conservadores, que nos desafia para uma análise menos fragmentada e mais sistêmica da sociedade. A religião e cultura estão correlacionadasem sua forma de manifestação na sociedade e na vida das pessoas, especialmente na vida das mulheres. O acreditar religioso entra na construção cultural formando um sistema, e é difícil separar, mesmo num Estado que se denomina laico, no qual há uma clara divi-são entre Estado e religião. É possível separá-las (?) apenas para análise, mas no cotidiano das mulheres ela (?) exerce uma influência indissociável, que alimenta as punições, o medo, o silêncio e a vergonha do ser.Segundo Haidi Jarschel e Cecília Castillo Nanjari. “A experiência com o sagrado tem configurações diferentes a partir de diferentes paradigmas, cosmovisões e símbolos de salvação”. 2008O sagrado para algumas mulheres é manter-se limpa. E essa limpeza passa pela ótica de se ser inferior, de não se pertencer à escuridão, de se andar confor-me o patriarca e o capital determinam. De ser mulher preparada para obedecer ao homem, de calar-se quando precisa falar. O sagrado passa pela ótica de se constituir uma família à imagem e seme-lhança de Deus. No centro o homem, que produz, que põe comida na mesa, e, do outro, a esposa fértil, que cuida da casa, dos filhos e do marido, sendo obediente e zelando pelo marido que Deus escolheu para ela. Minha avó era mãe solteira, deixou-se envolver e enganar por diversos homens. Mas sua filha ela quis casada na igreja católica, como preconizam as regras sociais. Foi criada bordando e cozinhando, para ser uma boa esposa e mãe. Porém ser negra era sinônimo de ser burra e, para que a filha tivesse um caminho pouco diferenciado do seu, proporcionou-lhe um curso de datilogra-fia, pois este lhe permitiria ter a esperança de trabalhar com carteira assinada e assim assumir seu espaço na sociedade. Nesse processo observatório (de observação?) tomei para mim o que alguém falou: 
 Sou Fulana de Tal, 18 anos. Minha mãe é do Axé, fui criada na gira e vivia muito bem. Hoje minha mãe continua freqüentando os terreiros mas desde que eu completei 15 anos, ela me proibi. 
Na verdade foi desde que o pai a deixou. Ele gritava aos cantos das paredes de casa que “não queria mulher dele na macumba, na putaria, esses lugares só da confusão e fofoca. Deixa essa palhaçada inferna”. Minha mãe é negra e me teve com um homem branco, de família católica, mais ele não freqüentava a igreja.Penso que minha mãe me proibi de ir, para não acontecer comigo o que aconteceu com ela. Ela todos os dias era humilhada em casa por ser da religião, do axé. Eu gosto de vim nessa caminhada todos os anos, mais ela nem sonhaque estou aqui. Acho que ela vai sofrer mais uma vez. E não quero isso. A mãe de santo dela me aconselhou dar um tempo a ela. Não me vejo como meu pai que diz que é católico mais na verdade não é, e nem quero ser evangélica. Não tenho vergonha de gostar dos guias e nem de usar as miçangas. 

Penso que o preconceito é algo que é alimentado e a falta de conheci-mento faz com que as pessoas tenham comportamentos agressivos. Mulheres como a que é referida no depoimento carregam consigo a culpa da separação e de a filha ter sido criada sem o pai, sem a presença do chefe da casa. Vejo também nesse caso que a mãe não deixou sua religião; penso que o sagrado é muito mais forte dentro dela; mas, mesmo assim, ela sofre, pois apresenta sinais de que não quer o mesmo para sua filha. É cruel a violência praticada contra as mulheres que fazem culto a sua fé. Tantas vezes ouvimos mulheres falarem assim: 


“Meu marido disse em casa que daqui a pouco ele vai trazer minha mala pra cá, pra morar com o padre”“...Eu chamo todas as vezes que venho ao culto ele diz: Eu lá vou nada, vou ficar dando dinheiro para igreja, vai tu, vai sozinha, tu não nasceu só?” 

Eis palavras que provocam marcas profundas na alma das mulheres. São sacerdotisas da fé. Essas mulheres sofrem duplamente, em casa e no espaço da fé. A partir desse processo do cristianismo, prega-se a mulher como um ser frágil e sem capacidade de discernimento e de ser autônoma, e que precisa ser vigiada, protegida, monitorada, pois a qualquer momento pode vacilar e ser uma “Eva” ou uma “Maria Madalena” talvez.. Minha avó, como disse, freqüentava também as missas, as procissões e todas as noites rezava o terço. Lembro bem que ela tinha, até o ultimo dia de sua vida, uma casinha (era o santuário) dentro do seu quarto. Tinha várias imagens como de São Benedito e Iemanjá. Debaixo do santuário existia outro espaço sagrado, onde ela cuidava das coisas dos santos. Lembro que tinha conchas, pedras, água e outros objetos sagrados. Só não lembro se ela falou o motivo de as coisas dos santos ficarem escondidas debaixo dos outros santos!

Vejo hoje o quanto ela sofreu, perseguida pela religião cristã. Lembro também que, quando íamos à missa, ela não comungava, só o fez aos 81 anos quando se crismou. Quero dizer, ela tinha dentro de si que não era digna de receber o corpo e o sangue de Cristo, pois tinha de deixar a religião da escuri-dão para ser abraçada pela religião da luz.A violência contra mulher é assustadora: com agressões e crimes bárbaros, físicos e psicológicos, covardemente cometidos em nome do outro. Todos os dias os jornais exibem manchetes noticiando que “mulheres apareceram mortas esquartejadas”; que “uma menina de 5 anos é estuprada e morta”; que “adolescente é violentada pelo tio e encontrada com vísceras ex-postas e mãos decepadas”. Há manchetes que anunciam que “filha-de-santo é apedrejada quando saía do templo que freqüentava” .Segundo A. P. Angiole8 , o medo e a vergonha calam e silenciam as so-breviventes. A falta de punição dá força aos agressores e muitos encontram justificativas para seus atos: matam por amor, ciúme, excesso de bebida, drogas e dogmas religiosos; perdem a cabeça por não querer pagar pensão alimentícia; não aceitam a separação; ou porque a mulher só dá atenção ao pai e à mãe-de-santo.; com estes argumentos eles sustentam a superioridade e a força masculi-nas. Muitas razões apresentadas aos delegados e delegadas são grotescas: “Ela só cozinhava bem lá pro terreiro”, “Não sai da Igreja”.De acordo com a Organização Mundial de Saúde-OMS, 46% das mu-lheres assassinadas são vítimas do marido, namorado, ex-parceiro ou parceiro do momento. Pelo menos uma em cada três apanha, é violentada ou forçada a manter relações sexuais em algum momento de sua vida. A violência de gênero não é mais que o resultado das relações de domi-nação masculina e de subordinação feminina, em que o homem pretende evitar que a mulher lhe escape, pois não deseja separar-se dela, mantendo-a sujeita a uma submissão sem escapatória.Com base nas afirmações dos estudiosos nesse assunto, pode-se afirmar que a violência de gênero concentra-se em agressões individuais que trans-cendem o nível social e refletem, sem dúvida, a dominação de um grupo e a subordinação do outro.Estudos têm enfatizado a prevalência do fenômeno da violência intrafa-miliar e os fatores de risco a ele associados. Desta forma, têm sido apontados condicionantes que pertencem a diferentes níveis de análise, desde aspectos so-ciais e culturais (valores autoritários e patriarcais, aceitação da violência como forma de resolver diferenças, étnicas), de gênero (valorização da violência no desenvolvimento do papel masculino, aceitação da violência e o castigo como forma de resolver conflitos entre os casais), psicológicos (maior impulsividade, consumo de álcool e drogas) e até as experiências infantis de violência (dos pais, da vítima ou do casal maltratado).Minha avó nunca contou que um de seus maridos a machucou de fisica-mente, porém era visível os danos que a violência psicológica.lhe deixou. O papel que a religião atribui às mulheres é de submissão: boas filhas, esposas, companheiras de seus homens, mães zelosas, educadoras, cuidadosas e amorosas com seus filhos. Esta visão de mulher como ser passivo e submisso vai-se embutindo no inconsciente coletivo da população, atravessando as socie-dades de forma lenta e silenciosa, o que contribui para que se fortaleceça em seu âmago direito de pertença, de dominação e de posse que os homens têm enraizado dentro de si e que se alicerça nos caminhos e descaminhos que são a realidade de milhares de mulheres pelo mundo a fora.Observo que no candomblé as mulheres são respeitadas e valorizadas. As mais velhas são orientadoras das que estão chegando. Há um equilíbrio e partilha de saberes.Segundo Teresinha Bernardo9, em todas as sociedades conhecidas é o ho-mem que detém o poder religioso. É ele quem faz a mediação entre os “outros” e os deuses. Em outras palavras, somente alguns homens de uma determinada sociedade têm o poder de conversar e ouvir as vozes divinas. Assim, torna-se possível imaginar a abrangência do fascínio, a dimensão da surpresa e o próprio estranhamento, no dizer antropológico, do encontro de uma religião em que no lugar do masculino está o feminino. Tanto os estudiosos das religiões como as pessoas anônimas ficam surpresas quando se deparam com a mulher ocu-pando o ápice da hierarquia religiosa. No entanto, essa expressão religiosa está viva e faz parte da cultura brasileira. A maioria de seus elementos veio com os africanos para o Brasil.Além da matrifocalidade vivida por parte das mulheres africanas no Brasil e dos aspectos importantes levantados para a compreensão da mulher como detentora do poder religioso, sublinha-se a existência também da matrilineari-dade. Em outras palavras, a matrifocalidade, aqui, combina-se com a matriline-aridade. Este último conceito ganha sentido com a norma de que os filhos ao pertencerem sempre ao grupo da mãe, a descendência é matrilinear. 
 A existência da matrilinearidade é comprovada também pelo jogo de bú-zios – peça-chave do candomblé – em que as mães-de-santo tradicionais, antes da primeira jogada, pede o nome e o sobrenome da cliente, só que este último só do lado materno. Todo o jogo, especialmente as relações do presente com o passado, desenrola-se através da matrilinearidade. Desse modo, essa prática divinatória é povoada de imagens femininas, da bisavó, da avó, da mãe, da filha, da tia materna.Assim, a definição de matrifocalidade discutida por Scott se completa. Em suas palavras:
 “(...) é também na provável existência de manifestações culturais e religio-sas que destacam o papel feminino”. 
Para iluminar ainda melhor este fato o da chefia feminina, torna-se im-portante destacar alguns fatores que foram incisivos para que a mulher viesse a ocupar o ápice da hierarquia religiosa, além dos outros que foram elencados no trajeto feminino da África para o Brasil. As mulheres africanas pertencentes a etnias fons e yorubás exerceram em seus respectivos reinos um poder políti-co importante. É claro que no presente da escravidão esse poder teve que ser ressignificado. Na realidade, é totalmente contraditório com a situação de escravo o exercício de qualquer poder no plano do real. Assim, pode ter ocorrido uma transformação: se não existiam condições de exercício do poder real, exercia-se no plano do imaginário, através da religião. Outro aspecto que deve ser destacado para iluminar o fato de a mulher vir a ser a sacerdotisa-chefe do candomblé diz respeito à densidade do sentimento materno na africana. Esse sentimento, por sua vez, tem muito a ver com a no-ção de Terra-Mãe comentada por Morin10. A Terra-Mãe como metáfora só virá a florescer em toda a sua extensão nas civilizações agrárias, já históricas: o trabalhador Anteu colhe sua força no contato com a terra, sua matriz e horizonte, simbolizada na Grande Deusa na qual jazem seus antepassados, e pela qual ele se julga fixado desde sempre. Com esta fixação ao solo, virá impor-se à magia da terra natal, que nos faz renascer porque é nossa mãe. É bem conhecida a dor do banido grego ou romano que não terá ninguém que lhe continue o culto como ficará separado para sempre da Terra-Mãe (Morin, 1988: 114).

Assim, vejo a religião de matriz africana, uma religião que dialoga com o sagrado feminino. É no solo brasileiro que frutificará o candomblé, a terra-mãe como metáfora para os africanos e seus descendentes. Se o candomblé representa a terra-mãe que, por sua vez, possui os seus significados ligados ao feminino, essa expressão religiosa, ao representá-la, ganha todas as suas signifi-cações. É nesse sentido que a grande sacerdotisa do candomblé é chamada de mãe-de-santo. Essa denominação não é casual - Jung 11afirma:“É a mãe que providencia calor, proteção, alimento, é também a lareira, a caverna ou cabana protetora e a plantação em volta” (Jung, 1993: 39). Assim era minha avó Joana, a Tia Benedita, a Dona Margarida, a Maria da Cabocla Mariana, e tantas outras de terreiro. Elas cuidavam de outras mulheres, traziam pra si, como se fossem uma grande árvore que cobre acolhendo. Ela é o poder em si, tem tudo dentro de seu ser. Ela tem tudo. Ela é um ser auto-suficiente e não precisa de ninguém. É um ser redondo primordial, esférico,contendo todas as oposições dentro de si. Awon Iya wa são andróginas, elas têm em si o Bem e o Mal; dentro delas, estão a feitiçaria e a antifeitiçaria; elas têm absolutamente tudo, elas são perfeitas (Carneiro da Cunha, 1984: 8)12 Elas são supe-riores ao capital, patriarcado, são unas. Segundo Sueli Carneiro e Cristiane Cury.
 "Quando a sociedade capitalista, através das relações sociais de produção que estabelece, reifica o indivíduo, desumanizando suas relações; quando propõe uma visão individualizante de mundo, destituindo núcleos comunitários remanescentes de outros momentos históricos; quando fundamenta uma ciência que tem como função a dessacralização da cultura, forjando seu reino na terra, parece significativo o fato de o Candomblé se expandir ver-tiginosamente, levando-nos a crer que este se coloca como uma forma de resistência à fragmentação da existência do homem brasileiro, seja no plano concreto, seja no plano ideal da explicação ontológica'.

Podemos afirmar que o candomblé é uma religião de matriz africana por-que ele reúne diversos cultos a orixás da África num só panteão, preservando uma estrutura mítica semelhante aos cultos africanos. Na diáspora dos negros africanos, etnias distintas, sob a hegemonia dos povos yorubás (principalmente), criaram em solo brasileiro o que hoje chamamos de Candomblé. Esta religião possui um sistema mítico que contrasta e conflitua com a ordem racionalista e excludente do mundo ocidental.
Posso afirmar que minha avó estava no lugar certo. Como diz o Eduardo David de Oliveira14, o sistema mítico do candomblé não é fragmentário nem excludente; é totalitário no sentido de abranger o ser humano como um todo, e integrativo. Os mitos, os processos de iniciação, os rituais, enfim, toda a estrutura mítica do candomblé obedece a uma lógica própria que concebe o tempo e o espaço diferentemente de como os concebe o mundo racional baseado em axiomas científicos do Ocidente. Enquanto o que regula a sociedade capitalista ocidental é o tempo cronológico, tempo medido sempre pela produção do capital, tempo, enfim, sempre capitalizado, no candomblé prevalece o tempo mítico. Enquanto o primeiro é fragmentado e linear o segundo se realiza plenamente dentro de um ciclo que abarca a totalidade do ser humano. Minha avó era uma mulher negra, acredito que ela encontrou no can-domblé não apenas possibilidades de se encontrar religiosamente como também política e socialmente. Maria de Lourdes Siqueira vai dizer que, com efeito, na cosmovisão das religiões de matriz africana, não existe uma distinção muito nítida entre o sagrado e o profano, intepenetrando-se estas duas esferas. A mulher que quotidianamente, no mundo ocidental, vive em conflito com o social, porque relegada a um plano inferior da existência em sociedade, encontra nos ritos do candomblé a forma de ritualizar este conflito. Assim, se cozinhar é uma tarefa menor, sem valorização social, assim como as atividades domésticas em geral, no candomblé tais tarefas possuem um valor inestimável. A realização das referidas tarefas é um privilégio que não cabe a todos. Essa valorização redimensiona o papel da mulher tanto no plano místico do candomblé como no plano social. 
Este sentimento de intimidade da mulher negra com a mitologia e com a ritualidade religiosas afro-brasileiras abre caminhos para que ela vá co-nhecendo, ampliando, recriando e transformando, numa forma de poder socialmente construído, assumindo papéis que vão-se redefinindo a cada passo: ora mãe, ora educadora, ora curadora, estabelecendo relações sociais, políticas e mesmo diplomáticas.

“Como a mulher no Candomblé comumente dirige os “terreiros” na figura da yalorixá, da mãe-de-santo, ela conhece todos os rituais e segredos da mística religiosa afro-brasileira, além de ser a responsável pela administração da “roça” Ora, “ aprendendo e ensinando a religião dos orixás, a mulher negra desenvolve suas próprias capacidades administrativas, políticas-sociais, humanas e religiosas.17A valorização da mulher não implica a dominação dos homens. No can-domblé, apesar dos conflitos, não existe esta pulsão de eliminação do outro porque este outro é diferente. Como vimos insistindo, o que existe é a com-plementaridade das funções, e não o predomínio de um gênero sobre o outro. Isto só é possível porque na cosmovisão do Candomblé, a “existência dos ori-xás essencialmente femininos, de orixás essencialmente masculinos e de orixás ambivalentes ou andróginos, expressa uma compreensão profunda da própria sexualidade humana”.18Notamos, assim, que a cosmovisão implícita do candomblé está em con-flitos estruturais com a cultura do Ocidente. Seja pela valorização da mulher em sua dimensão política, religiosa ou social, seja pela compreensão do ser humano longe do binarismo homem-mulher, o candomblé apresenta-se com valores civilizatórios mais coletivos, mais integracionistas, mais humanos que os modelos ocidentais. Daí Sueli Carneiro e Cristiane Cury afirmarem que “a organização social do candomblé procurará reviver a estrutura social hierár-quica de reinos africanos (especialmente de Oyó) que a escravidão destruiu, porém na diáspora esta forma de organização visará reorganizar a família negra, perpetuar a memória cultural e garantir a sobrevivência do grupo e, ainda, a transmutação nos deuses africanos será a fonte de sustentação dessas mulheres para o confronto com uma sociedade hostil”19A violência contra mulher no âmbito da fé e em outras esferas precisa ser curada. Assim observo que em alguns templos ou terreiros na Cidade de Manaus vêm buscando organizar as mulheres. Fortalecendo sua cabeça e alma. Deixando, abrindo espaços para luta política social. Pensando assim o Terreiro da Mãe Nonata abriga dois grupos de mulheres do axé. O Grupo Nossa Senhora da Conceição abriga, orienta e acompanha vítimas de violência. Há também as Yalodeis, que trabalham com formação nas comunidades, escolas, levando informação sobre os terreiros. Para conhecer toda a história dos terreiros e unir forças contra a Intole-rância Religiosa, assim foi constituída a cartografia dos terreiros da Cidade de Manaus. Desta forma podemos identificar quantas mulheres como minha avó Joana sofreram e sofrem.Também nesse universo de mulheres fortes, solidárias e, com vontade de mudança observo alguns desafios: Tenho observado por onde passo que o to-cador de tambor é chamado de Ogan, abatazeiros, abatas, enfim, de batedores de tambor. Mas o que me chama atenção é o processo de preparação desses homens para a liturgia, celebração, mística, culto e roda. Percebo que esses ho-mens carregam segredos dos terreiros. Os segredos dos tambores é um elemento sagrado da cultura. Eles unem os rituais para preparação, iniciação, para dança e oferenda. Os toques, os segre-dos dos toques, as regras para utilizar os Batas20 sagrados, que são criaturas vivas, dispensam cuidados especiais. 21A força espiritual contida nos tambores, para mim, é a força do terreiro. É o que move a energia. É o que une a fé. O que vejo é que esse elemento de poder pertence ao universo masculino,e não às mulheres. Lembro-me que uma vez no Terreiro de Santo Expedito, que é do meu tio Manoel, onde o meu pai Mario Jorge toca, fui impedida de tocar. Percebi neste momento que a mulher pode dançar, cantar, curar, fazer oferendas, rece-ber os guias, mas o maior segredo está nas mãos dos homens. Este é desafio para mulheres do axé. Esse elemento puro de segredo de-veria ser democratizado, partilhado. Tata Anselmo22 diz: “Como todos nós sabe-mos, a religião do Candomblé é comunitária por excelência e todas as ativida-des desenvolvidas num terreiro são voltadas para melhorar a qualidade de vida e a auto-estima de seus seguidores”.Penso que os Batás e seus segredos devem ser socializados e partilhados com as mulheres, fortalecendo as forças divinas dos orixás. 

Livro: Religiões em Dialogos - Yury Puello Orozco (organizadora)
Francimar Santos Junior – (Francy Junior -Ativista dos Movimentos de Mulheres Negras da Floresta -Dandara e do Fórum Permanente das Mulheres de Manaus)

 BiBliografiaCARNEIRO, Sueli; CURY, Cristiane. O candomblé . Mimeo.CARNEIRO, Sueli; CURY, Cristiane. O poder feminino. Mímeo.JARSCHEL Haidi e NANJARÍ Castillo, Cecília. Religião e violência simbólica con-tra as mulheres. In: ST 62 Direitos Humanos, Democracia e Violência. Fazendo Gênero 8 - Corpo, Violência e Poder. Florianópolis, agosto de 2008.RIBEIRO, Ronilda. Alma Africana no Brasil. Os Iorubás. São Paulo: Editora Odu-duwa, 1996.SCHRAIBER, Lilia Blima e D’OLIVEIRA, Ana Flávia Pires Lucas. “A violência in-trafamiliar e as mulheres: Considerações da perspectiva de gênero”. In: Conciencia Latinoamericana. v. XIV, n.o 12, octubre 2005. p.30-35.SIQUEIRA, Maria de Lourdes. Iyami, Iyá Agbás. Dinâmica da espiritualidade feminina em templos afro-baianos. Mímeo.