No espetáculo “Trem de Minas”, ator faz uso de blackface para representar babá negra
Blackface,
técnica de caracterização de atores brancos como personagens negros a
partir do uso de tinta preta na pele e uso de outros elementos
estereotipados, é uma ferramenta racista que se iniciou no século XIX,
nos Estados Unidos, em populares shows de menestréis que ridicularizavam
os sujeitos negros.
por Joyce Athiê no O Tempo
Com o uso da mesma ferramenta, a peça “Trem de Minas” gerou polêmica,
antes mesmo de sua estreia na Campanha de Popularização do Teatro e da
Dança, prevista para ontem à noite, quando o jornalista mineiro Miguel
Arcanjo Prado chamou atenção para a técnica em seu blog, o que
repercutiu nas redes sociais.
“Trem de Minas” é uma comédia dos
atores e irmãos gêmeos Leosino e Leonildo Miranda Araújo, ou Leo e Leo,
como assinam, que trata da cultura mineira, em seus aspectos históricos,
remetendo a alguns de seus personagens típicos. É nesse viés que os
artistas representam, com o uso do blackface, uma mulher negra, em
referência à babá dos gêmeos. “Nós temos uma mãe preta que ajudou nossa
mãe a cuidar de nós. Fazemos essa homenagem a ela, que nos carregou no
colo, mas as pessoas entendem de outra forma”, afirma Leonilson. “Temos
que aceitar a crítica, mas nossa proposta é outra. É uma maneira de
retratar a cultura mineira de forma diversificada. Não estamos brincando
com a questão étnica no sentido de ridicularizar, mas de homenagear. Eu
ainda não entendo essa questão, até gostaria de entender”, completa o
ator.
REAÇÃO
Se a ação do blackface já anuncia o
racismo, as justificativas são reveladoras de seu naturalismo e
impregnação na cultura brasileira. “A questão é que o povo faz esse tipo
de coisa como se fosse algo natural. Não enxergam o preconceito. Mas
chega, não dá mais”, comenta Marcos Alexandre, ator e professor doutor
da Faculdade de Letras da UFMG.
“Eu entendo que eles estão
bem-intencionados, mas será que a babá deles se vê representada dessa
forma que eles trazem? Pintar a cara, colocar uma roupa estranha e fazer
uma caricatura, que homenagem é essa? Isso é trabalhar com os clichês. É
incoerente, ainda que, por trás, haja uma boa intenção. Não podemos
deixar de dizer que eles estão equivocados”, pontua.
Para Soraya
Martins, atriz e pesquisadora, o exemplo é um reflexo da reprodução do
racismo no país. “Esses artistas nem devem saber o que aconteceu com a
Cia. Os Fofos (leia o infográfico) em 2015. Temos que abrir e estender
isso para a sociedade de forma ampla. Vamos ter que fazer pedagogia.
Apontar onde está o racismo, o que significa não chamar um ator negro
para fazer um papel”, enfatiza.
Soraya cita o episódio que motivou
Abdias do Nascimento a criar o Teatro Experimental do Negro (TEN). Em
1941, ele assistiu a uma montagem de “O Imperador Jones”, obra de Eugene
O’Neill em que o protagonista traz reflexões sobre a vida de uma pessoa
de origem africana em sociedades racistas nas Américas. “Ele ficou
abismado quando viu um ator branco fazendo blackface, porque um branco
estava retratando um negro daquela forma, pintando o corpo”, conta a
atriz e pesquisadora.
Marcos Alexandre lembra o lugar de fala, tão reclamado por movimentos
e segmentos sociais em busca da garantia da representatividade. “É o
lugar a partir do qual o sujeito enuncia seu discurso. Nós, como
sujeitos negros, temos um repertório que nos permite falar desse
sujeito. É o lugar da nossa vivência, das nossas memórias afetivas. Não é
que as outras pessoas não possam falar sobre o assunto. Senão, caímos
na fala de sempre. Na arte, todo mundo pode fazer. O teatro é para que
todos façam. A questão é como. O que se quer trazer com essa
representação? Estereótipos desse sujeito? Isso não dá mais”, observa.
Outro
ponto que o exemplo de “Trem de Minas” levanta é a representação de
negros dentro de instâncias de seleção e curadoria. A peça faz parte da
programação da Campanha de Popularização, evento do Sindicato dos
Produtores de Artes Cênicas de Minas Gerais (Sinparc) e leva a mesma
personagem para o espetáculo “Contos Afro-Brasileiros”, que foi
realizado com recursos da Lei Municipal de Incentivo à Cultura. “Não há
negros nesses lugares de escolha, de curadoria. Há brancos que, em sua
maioria, não dialogam com questões que fogem do universo dele”, diz
Soraya.
O Sinparc afirmou, por meio de nota, que acredita “na
liberdade de expressão”. “O ator possui vários recursos cênicos
apropriados para seu trabalho. Um deles é a caracterização de um
personagem”, informou. O sindicato ainda orientou que pessoas ofendidas
entrem em contato com a ouvidoria da Campanha ou órgãos públicos.
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