A ideologia do mérito difundida massivamente na mídia convence a
população de que todos podem 'vencer na vida' (expressão muito usada
pelos entrevistados) se houver, unicamente, esforço pessoal. Até os
sites liberais sabem que esta constatação é falaciosa. As desigualdades
estruturadas e estruturantes da sociedade são barreiras quase
intransponíveis para alcançar o que a classe trabalhadora entende como
'sucesso', escreve Jordana Dias Pereira, socióloga, em artigo publicado por Fórum, 06-04-2017.
Eis o artigo.
Uma boa polêmica tomou conta de redes sociais a partir da recém-lançada pesquisa da Fundação Perseu Abramo, que aponta uma tendência das camadas de menor renda da nova classe trabalhadora para a orientação liberal.
A princípio, é importante destacar que este resultado não é uma
novidade para o campo progressista. Há extensa bibliografia sobre os
efeitos da ascensão social e do aumento do poder aquisitivo neste
estrato social específico.
Os governos do PT, com políticas de ampliação do
crédito e de aumento do salário mínimo, possibilitaram que o povo
alcançasse aquilo que almejava num primeiro momento: acesso aos bens consumo (eletrodomésticos, carro, casa própria…). Isso deve ser visto como uma conquista importante da classe trabalhadora.
Deve-se refletir, no entanto, sobre o outro efeito desse alargamento
do acesso ao consumo: parte dos serviços essenciais passaram a ser
vistos como mercadoria e não como direito. Na ânsia de encontrar melhor
atendimento médico, melhor ensino, a classe trabalhadora opta pelo que
parece oferecer mais eficácia e eficiência e passa a pagar por ele.
Alguns autores denominam este fenômeno como efeito da ‘inclusão pelo
consumo’.
Neste sentido, pode-se dizer, com segurança, que o período das gestões Lula e Dilma foi
também fortemente marcado pelo aumento da busca por serviços privados
de saúde e educação. Mais adiante, esse fenômeno resultou na vitória, em
São Paulo, de João Doria Junior,
que usou um discurso privatista em sua campanha. Evidencia-se, assim,
que o consumismo e o liberalismo sempre estiveram presentes no
imaginário coletivo desta população.
Aos olhos de alguns, esta constatação pode parecer uma contradição.
Qual é, afinal, a explicação para isso? Por que a classe que mais
precisa de políticas públicas reverbera um discurso de menor intervenção do Estado?
Primeiramente, deve-se considerar que a imensa maioria da população
ainda se informa, principalmente, pela TV aberta. Os sites e institutos
liberais insistem em ignorar que há interesses econômicos que disputam a
opinião dos espectadores para que elas pensem justamente dessa forma.
Ora, os planos de saúde,
por exemplo, têm interesse em que o maior número de pessoas faça adesão
a eles. Fazem publicidade e financiam as TV’s abertas às quais a
maioria da população se expõe. Interessa também aos planos de saúde, por
exemplo, que o serviço público não funcione. Assim funcionam os lobbies
(institucionalizados nos EUA, e ainda clandestinos no
Brasil, mas muito presentes no financiamento de campanhas eleitorais).
Assim, forma-se toda uma rede de mídia-empresas-políticos que torce pela
falência do serviço público de saúde
e adesão dos mais pobres aos convênios médicos privados. A ideologia
dominante se faz presente, afinal, e impera justamente via esse
circuito: mídia e consumo. Este exemplo pode ser alargado a vários
outros segmentos como educação, transporte e cultura. Interessa às
universidades particulares a falência das públicas; às grandes
concessionárias de carros a falência do transporte público etc.
Também é um dado importante que a amostra estudada na pesquisa
encontra em shoppings centers seu espaço prioritário de lazer. Assim,
não é de se surpreender que ela tenha seu discurso mediado pelo consumo e pela mercantilização. O capitalismo vende como imagem de sucesso a posse de iates, mansões, carrões.
Para finalizar, é fundamental evitar distorções dos resultados: os
sites liberais desconsideram a parte da pesquisa que fala sobre a
diferença do discurso e da vida real e prática. Num primeiro momento, os
entrevistados, que não costumam refletir muito sobre aspectos mais
abstratos e conceituais, de fato, fazem discursos mais difundidos na
mídia. Num segundo momento, no entanto, quando questionados sobre a vida
cotidiana, as políticas públicas
são muito valorizadas. A presença do Estado é sentida e desejada. Este
sentimento aparece de maneira muito consistente quando falam da
importância de carteira assinada, na recepção positiva
ao bolsa família, na exigência de saúde pública, na necessidade do uso
do transporte público e valorização das melhorias das gestões petistas
na cidade de São Paulo. Seguem destaques:
O liberalismo
e o discurso meritocrático levados ao limite podem ser muito cruéis com
as camadas da população que já têm menos oportunidades. Ao acessar o
conjunto das entrevistas realizadas pela FPA, uma salta
aos olhos: uma entrevistada adulta moradora do extremo da zona leste,
por exemplo, se queixou pelo fato de não ter conseguido acessar o ensino
superior. Enumerou diversas razões de ordem material e prática: não
tinha faculdade perto de casa, o deslocamento trabalho-casa-faculdade
tomava muito tempo, não tinha dinheiro para transporte, tinha que
trabalhar até tarde, teve filho cedo etc. No entanto, ao final,
concluiu: “mas, se eu tivesse me esforçado mais um pouquinho, talvez
estivesse melhor agora”. A ideologia do mérito
difundida massivamente na mídia convence a população de que todos podem
“vencer na vida” (expressão muito usada pelos entrevistados) se houver,
unicamente, esforço pessoal. Até os sites liberais sabem que esta
constatação é falaciosa. As desigualdades
estruturadas e estruturantes da sociedade são barreiras quase
intransponíveis para alcançar o que a classe trabalhadora entende como
“sucesso”.
Assim, ao contrário do que dizem os sites liberais, o PT
não se equivocou quando “acreditou que havia luta de classes”. Ao
contrário, se equivoca quando a subestima. As gestões petistas não
enfrentaram a grande mídia e não encamparam a necessária reforma da
comunicação que diminuiria a influência do poder econômico sobre os
meios; tampouco apresentou a reforma política
que tornaria os espaços políticos de representação mais transparentes,
democráticos e inteligíveis à maioria da população. E ainda não adotou
políticas estruturantes para os grandes centros urbanos que
constituíssem espaços públicos de lazer e sociabilidade – políticas
estas que poderiam disputar a preferência da classe trabalhadora pelos
shoppings centers, ao passo que estabeleceria diálogo com um sentimento
latente de coletividade expresso pelos entrevistados. O PT melhorou a vida das pessoas da porta de casa para dentro, mas elas demandam também melhoras da porta de casa para fora.
E uma política que faça sentido para as pessoas deve,
necessariamente, tratar da melhoria de vida delas. O desafio está
colocado: como renovar a política e tratar os anseios desta população de
maneira menos preconceituosa e determinista, mas fortemente
compromissada com a qualidade de vida da classe trabalhadora das
periferias do país?
Esta foi a primeira pesquisa da FPA sobre o imaginário da periferias de São Paulo desde o golpe de 2016. Que venham mais pesquisas e mais debates.
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